Surto de “virose braba” pode esconder avanço da Covid-19 nos quilombos do Baixo Amazonas (PA)
Tosse, febre, dor de cabeça. Depois de alguns dias, há perda do olfato e paladar. “É virose”, arriscam algumas pessoas.“Virose braba da baixada da água”, dizem outras, referindo-se a um tipo de virose que pode aparecer quando as águas dos rios começam a baixar depois do período de cheias do inverno Amazônico.
Os sintomas característicos que atingem boa parte das pessoas das comunidades e que muita gente interpreta como virose, no entanto, não deixam muita dúvida: é possível observar o avanço do coronavírus nos quilombos do Baixo Amazonas.
Não há dados produzidos pelo governo sobre a contaminação do vírus entre quilombolas. No entanto, um mapeamento realizado pela Malungu, a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará, em parceria com o Sacaca, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Sociedade Amazônica, Cultura e Ambiente da Universidade Federal do Oeste do Pará, identificou 11 casos registrados de contágio de coronavírus nos quilombos do Baixo Amazonas, e dois óbitos confirmados.
O número, que parece baixo considerando a região formada por 13 municípios do Oeste do Pará – entre eles Santarém e Oriximiná –, no entanto, está muito aquém da realidade. “Temos a informação de bastante pessoas infectadas, apresentando os sintomas”, conta Raimundo Magno Nascimento, integrante da Malungu e um dos responsáveis pelo Comitê de enfrentamento a Covid-19 do movimento quilombola no Pará. A ausência de políticas de saúde voltadas às comunidades quilombolas, a falta de testes, o racismo estrutural no atendimento à esta população e a dificuldade de comunicação com quilombos mais distantes faz com que os casos sejam subnotificados.
Em todo o Pará, a Malungu já identificou 457 casos confirmados entre quilombolas, e 29 óbitos. O estado é que mais registrou morte de quilombolas pelo vírus, segundo levantamento da Coordenação Nacional das Organizações Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “O que conseguimos é um número mínimo”, alerta Magno. Segundo ele, pode-se estimar que a subnotificação dos casos é de ao menos 70%, considerando que apenas 30% das 600 comunidades quilombolas do Pará foram mapeadas. “Mesmo com os quilombos que temos contato, ainda não conseguimos levantar 100% dos casos, por causa do desconhecimento, preconceito, ou por acharem que o vírus é virose braba”, conta.
Preconceito e desinformação
Pesquisadora do Sacaca e professora do Programa de Antropologia e Arqueologia da Ufopa, Luciana Carvalho, destaca que o Baixo Amazonas é umas das regiões do Pará onde há menor registros de casos de coronavírus nos quilombos. Isso, no entanto, não representa menor contaminação na região. Segundo ela, as comunidades no Baixo Amazonas estão localizadas em zonas rurais ribeirinhas, com maior dificuldade de comunicação, diferente de quilombos que estão mais próximos aos centros urbanos, como na região de Belém. Além disso, os boletins diários divulgados pelas secretarias de saúde da região não especificam os dados referentes a quilombolas, nem especificam aspectos de gênero e raça.
Outro desafio encontrado no levantamento de dados é a dificuldade de as pessoas reconhecerem e comunicarem que os sintomas que sentem são associados a Covid-19. “As pessoas não falam. Até relatam que na comunidade está cheio de pessoas doentes, mas consideram virose”, conta Luciana.
A dificuldade que os quilombolas encontram para verbalizar que podem estar com o vírus não é à toa. As famílias de comunidades onde houve registro de casos sentem a discriminação e o racismo, agora de forma ainda mais acentuada. Segundo relatos, serviços de comércio e de transporte já foram negados por receio de contaminação.
“Eu entendo que as pessoas não queiram admitir com o receio das pessoas se afastarem”, conta Luciana. “Toda campanha de prevenção também é muito focada nas condições de higiene, que nem sempre as comunidades dispõem [como água corrente na torneira] e as pessoas que estão com os sintomas tem receio de serem taxadas de sujas”, avalia.
A contaminação por coronavírus nos quilombos também é reflexo da situação de toda a região, e possivelmente, apresentam até menos casos do que em outras comunidades. Apenas na cidade de Santarém, por exemplo, 3 mil casos de coronavírus foram confirmados, e há relatos de “virose” e de confirmação de Covid-19 em diferentes bairros e comunidades, mesmo nas mais afastadas do centro da cidade. Quase 4 mil casos estão sendo monitorados pela Secretaria de Saúde da cidade.
O receio de ser vítima de discriminação, segundo Luciana, é maior “sobretudo nas comunidades negras que já são tão castigadas”. Mas ela aponta: “Se tiver o sintoma não tenha medo ou vergonha de procurar ajuda. É melhor cortar o mal pela raiz”.
Pressão ao poder público
Apesar dos desafios em coletar os dados sobre registros de Covid-19 em todo o Pará, Magno destaca a importância dessa ação. “Se nós não tivéssemos feito esse trabalho de auto identificação e auto registro, a situação seria ainda pior, porque não teríamos informação nenhuma”, conta. Através do levantamento, é possível saber que, além das 29 mortes, cerca 1 mil quilombolas do estado comunicaram que estão com suspeita de coronavírus, mas estão sem assistência médica – outros tantos que apresentam os sintomas não informaram à Malungu.
A falta de atendimento e de testes rápidos nos quilombos é uma das grandes preocupações do movimento quilombola. A falta de assistência do Estado, no entanto, não é algo novo na vida das comunidades. “O coronavírus por si só não é o único problema. Ele só acirra o problema vivido pelos quilombos em todo o país”, lembra.
Os dados levantados pela Malungu em parceria com o Sacaca também foram encaminhados aos Ministérios Públicos Federal e do Pará, através de uma representação. No documento, a Malungu pressiona o Estado e o município à pensarem políticas de saúde voltada às comunidades quilombolas.
No dia 17 de junho, a Malungu também divulgou uma nota pública para marcar um mês de produção de boletins diários com informações da Covid-19 nos quilombos do estado. O texto destaca que o “esforço de sistematização e divulgação dos boletins diários deve alimentar a luta por condições dignas de atendimento para a população quilombola”, e lembra que a saúde quilombola se faz nas próprias comunidades e não em deslocamentos obrigatórios para as cidades, muitas delas já desprovidas de serviços de saúde para atender a população urbana”.
Os dados levantados pela Malungu também subsidiam denúncias feitas pela Terra de Direitos ao Ministério Público do Estado do Pará (MPE) sobre a violação de direitos das comunidades quilombolas durante a pandemia.
Texto e foto: Franciele Petry Schramm