9 décadas após visita de Mário de Andrade, Santarém permanece comparada à Veneza

Em 1927, Mário de Andrade visitava Santarém. Ícone da literatura nacional, entre maio e agosto daquele ano, o escritor aventurou-se pelo Brasil para descobrir lugares distantes e fez uma escala no Pará. Além de passar por Belém, que despertou grande admiração no autor, suas andanças o levaram ao Baixo Amazonas, onde as belas paisagens resultaram na comparação da cidade à Veneza, famoso ponto turístico italiano tomado pelas águas. O relato dessa passagem foi incluído no Livro o Turista Aprendiz, onde constam suas memórias.

Na obra, por diversas vezes referiu-se à Santarém como Veneza, incluindo a arquitetura dos prédios muitos próximos ao leito do rio ou até mesmo dentro dele. “Por causa do hotel ancorado no porto, enfiando o paredão n’água, e com janelas de ogiva!”, descreveu. A descrição pode ser atribuída ao antigo Castelo construído em 1905 e que por décadas esteve nas proximidades da Travessa dos Mártires.  

Segundo o livro Santarém: uma Síntese Histórica, da Historiadora Terezinha Amorim, “o castelo se tornou uma das mais belas visões desfrutadas por ribeirinhos ou visitantes que chegavam a Santarém”. Esta foi a visão que Mário teve e que os atuais santarenos não podem ver, já que o prédio foi demolido em 1982 e com ele foram sepultadas boa parte da história municipal.

Santarém dos anos 1920. À direita o Castelo com suas janelas de ogiva, que encantaram Mário de Andrade.
Foto: Acervo/IHGtap
O Escritor comparou Santarém com a cidade italiana de Veneza. Foto: Acervo/ICBS

Venezianos e o raro registro

Ainda descrevendo o que encontrou, o escritor citou a cordialidade e o tamanho da cidade, que apesar de sua importância não era muito grande. “Os venezianos falam muito bem a nossa língua e são todos duma cor tapuia escura, mui lisa. Fomos recebidos com muita cordialidade pelo doge que nos mostrou a cidade que acaba de repente”.

A viagem rendeu um raro registro em que o escritor se deixou fotografar em uma das praias em frente à cidade (Foto Destaque). Nele é possível observar o quanto a cidade mudou ao longo dos anos. Os casarões do século XIX, entre eles o Solar que pertenceu ao Barão de Santarém, permanecem de pé. Mas, com a iniciativa do ser humano de vencer a força das águas e resistir ao ciclo de enchentes, o leito do rio foi aterrado e ocupado.

Na década de 1970 a praia deu lugar ao que hoje é a Praça do Pescador e o lugar onde Mário aparece é a Avenida Tapajós. Nos anos 2000 o cenário viria a ser ainda mais modificado com a nova Orla da cidade e o Terminal Fluvial Turístico. A maioria dos muitos visitantes que circulam por estes logradouros jamais imaginou que o autor de Macunaíma, uma das obras mais importantes da literatura nacional também um dia passou por ali.

 

Entre maio e agosto de 1927, o escritor aventurou-se pelo Brasil para descobrir lugares distantes e fez uma
escala no Pará. Acervo Mário de Andrade
Casarões do século XIX que aparecem na foto, entre eles o Solar que pertenceu ao
Barão de Santarém, permanecem de pé. Foto: Sidney Oliveira/ Agência Pará

Relógio Parado

Ainda na icônica foto, é possível observar os barcos de pescadores que também chamou a atenção do ilustre visitante. “Na entrada do Tapajós vi barcas com umas velas esquisitas, eram as redes de dormir dos pescadores, servindo de vela. De noite, rede; de dia, vela”. Outro ponto visitado foi o prédio que hoje conhecemos como Centro Cultural João Fona. Construído entre 1853 e 1868, é o terceiro prédio mais antigo da cidade. No edifício funcionou a Intendência Municipal, a Prefeitura, o Salão do Júri, a Câmara Municipal, a Cadeia Pública e que há 30 anos é sede da memória e da cultural local, com atribuições museológicas.  

No local, Mário encontrou o relógio sem funcionamento o que fez analisar que a ausência da medição das horas explicava o motivo de Santarém se manter parada no tempo. “O relógio da Câmara estava parado, o que nos permitiu compreender Santarém há trinta anos atrás.”

Interesse Americano

Andrade cita ainda o interesse dos americanos pela borracha. “Andou, faz algum tempo, uma comissão norte-americana pelo Amazonas, estudando o problema do comércio da borracha, com idéias de fixar um ponto com todas as condições necessárias, mesmo de salubridade, em que os norte-americanos pudessem se estabelecer”.

Pouco tempo depois, a cidade operária dos americanos para produzir borracha em larga escala no meio da Amazônia saiu do papel com a construção do distrito de Fordlândia, que hoje pertence ao município de Aveiro. Em 1934, o empreendimento foi transferido para Belterra encerrando com o fim da Segunda Guerra Mundial. Em 1995 o então distrito tornou-se um novo município.

“Sensações venezianas” e memes

Exatos 94 anos após a visita, Santarém ainda vive “estranhas sensações venezianas”. Mesmo com todo esforço de cercar a orla da cidade com estruturas de contenção, as águas do rio Tapajós invadem as ruas e tornam o centro comercial e histórico em um cenário parecido com o encontrado em Veneza. Inevitavelmente, a comparação leva ao surgimento de memes.

Assim como em 1953, 2009, 2012 e 2014, o nível do rio em 2021 tem atingido marcas históricas.  Ao ultrapassar a marca de 8 metros, o fenômeno no rio Tapajós acaba causando diversos efeitos sociais e econômicos, o que levou o município a decretar situação de emergência. A equipe da Defesa Civil identificou as regiões de várzea do Arapixuna, Alter do Chão e Ponta de Pedras e alguns bairros da zona urbana como afetadas pela cheia.

Autor de Macunaíma

Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) foi um escritor modernista, crítico literário, musicólogo, folclorista e ativista cultural brasileiro. Seu estilo literário foi inovador e marcou a primeira fase modernista no Brasil, sobretudo, pela valorização da identidade e cultura brasileira. Ao lado de diversos artistas, ele teve um papel preponderante na organização da Semana de Arte Moderna (1922). Foi um estudioso do folclore, da etnografia e da cultura brasileira. Portanto, em 1928, publica o romance (rapsódia) “Macunaíma”, uma das grandes obras-primas da literatura brasileira.

Mário de Andrade: seu estilo literário foi inovador e marcou a primeira fase modernista no Brasil.
Foto: Agência O Globo